É muito fácil defender uma causa quando se tem um privilégio de escolher o que comer todos os dias. Parece contraditório escrever isso e querer falar sobre o veganismo, mas é um assunto que assombra o nosso país há muito tempo e discutir a fome é discutir problemas políticos/socioeconômicos e assim desnaturalizar.
Em 2014, o Brasil havia saído do Mapa da Fome e esse ano voltou pra essa "geografia", atualmente são 125,2 milhões (mais da metade da população brasileira) convivendo com a insegurança alimentar (quando alguém não tem acesso pleno ou permanente a alimentos) em que dos 33 milhões vivem em grau grave, ou seja, não tem o que comer, isso equivale um Peru inteiro ou 10 vezes o Uruguai de pessoas passando fome.
Por que discutir a fome é tão urgente?
Essa problemática traz junto outras questões sociais que vou citar aqui por partes:
Racismo estrutural:
A fome tem gênero, território e cor, de acordo com a pesquisa da Rede Penssan (2022) "o retrato da fome hoje é composto principalmente por gente do sexo feminino, moradora de periferia ou do meio rural, com baixa escolaridade ou analfabeta, negra, quilombola, indígena.
Meio ambiente:
O Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo e estes são destinados para alimentar a pecuária, o mais chocante é que essa quantidade de alimentos exportados daria para alimentar a população brasileira e ainda sobrar pra exportar.
Além da fome e a desvalorização da agricultura familiar, o agronegócio e a agroindústria são responsáveis pelo desmatamento e queimadas, crises climáticas, desertificação, perda da biodiversidade, degradação da terra e dos oceanos, poluição da água e do ar, aumento dos agrotóxicos e do carbono, aumento de lixos comuns e plásticos, sem esquecer também de outras atividades tóxicas que acompanham essa problemática como extrativismo ilegal, mineração e o garimpo.
Violência:
O crescimento drástico das produções de soja, cana de açúcar, milho e pecuária no decorrer dos anos está entrelaçado com o aumento das monoculturas coloniais - escravocatas - patriarcais, tomadas/invasões de territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhos e seringueiros, impactos ambientais, assassinatos de ativistas.
Conforme o relatório da ONG Global Witness, o Brasil é o quarto país com mais assassinatos de lideranças ambientas e do direito à terra.
Doenças:
No livro "Da fome à fome" mostra dados sobre o aumento do consumo de ultraprocessados nos hábitos alimentares dos brasileiros e por consequência o aumento da obesidade, diabetes e hipertensão em todas as camadas da população, mas principalmente nas famílias de menor renda/escolaridade.
A atual forma da produção dos alimentos industriais/ultraprocessados envolve uma dinâmica puramente econômica (baixa qualidade - menor preço) e as escolhas alimentares tem influência do nível de insegurança alimentar.
Além de todas essas doenças, a má nutrição afeta a alimentação das crianças causando a desnutrição infantil, alguns exemplos são faltas de vitaminas no corpo, baixa estatura para a idade etc.
Sem falar dos venenos que existem nos ultraprocessados, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) identificou presença de venenos (agrotóxicos) em 27 alimentos populares na rotina dos brasileiros. A existência desses venenos na nossa vida só irá piorar por conta das liberações recordes nos últimos anos, em 2019 e 2020, que foram quase mil novos tipos de agrotóxicos aprovados pelo governo + a aprovação do Pacote do veneno em 2022.
Capitalismo • Neoliberalismo:
O sistema estrutural brasileiro já começou com pensamento colonial/racial e este perdura até hoje na nossa estrutura social.
Desde as invasões portuguesas, as posses de terras estão concentradas nas mãos privilegiadas das elites, os alimentos produzidos pela monocultura colonial nunca foram destinados para alimentar o povo e sim para incentivar o tráfico de escravos e a exportação sendo mercadorias.
O tempo passou mas o sistema continua igual a do passado porém com uma pitada de modernidade. As elites e o Estado são contra a reforma agrária, demarcação de terras, continuam invadindo territórios ancestrais e violentando corpos, a produção de alimentos é de monocultura destinados a ultraprocessados e para exportação, invisibilizam alimentos culturais e nativos.
Quero ressaltar que desde o governo do Bolsonaro, foram extintos vários programas sociais assim como pesquisas direcionadas à alimentação, nutrição e saúde da população brasileira, este mesmo que apoia o agronegócio, o genocídio, o racismo, o patriarcalismo, o militarismo, destruição da cultura e da educação etc.
Desnaturalizar e combater a fome é uma prioridade política, socioeconômica e uma responsabilidade individual e coletiva.
Precisamos nos aprofundar nas políticas de redistribuição de renda e direitos sociais, apoiar e defender a agricultura familiar, povos tradicionais e originários, exigir a demarcação de terras e a reforma agrária como também a valorização do salário mínimo, aumento dos impostos sobre as fortunas financeiras e reformulação da alimentação escolar.
As escolhas individuais impactam nas vidas de t o d o s os seres, refletir nossas ações e valores pode realmente transformar as questões sociais e algum futuro.
Basta nos informar, estar com a escuta e o coração abertos e questionar sobre os privilégios ultrapassando o egoísmo pessoal, inclusive podemos começar com escolhas conscientes já nessa eleição né?
Oi vivi! Li e curti seu texto. Por várias vezes fico desesperançosa de perceber que a política que sustenta a nossa vida está nas mãos de machistas, racistas, elitistas, braquitude amoral e capitalista. Pelo voto mudaremos isso, mas o Brasil profundo ainda é tão marcado de desigualdades que sinto que ainda levaremos muitos anos pra parar de lutar pelas coisas mais básicas, como, por exemplo o fim da fome. A escravidão choca, mas nem tanto, nem todo mundo. Sim, a nova escravidão é a fome, fome que se sente no físico de muita gente, mulheres, crianças, fome essa que se sustenta numa fome ainda maior, a Fome de compaixão, fome de amor, fome de cuidado com o outro. Esse cuidado…